Surdez. Esse é um assunto que faz parte da minha vida e há poucos dias recebi a edição de no. 198, Outubro, Novembro e Dezembro de 2021 do jornal Psi, uma publicação do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo onde há uma matéria com o título parecido com este: precisamos debater sobre a diversidade na Surdez [1].
A coincidência foi proposital, pois aceito o convite para debater o seu conteúdo e com isso pontuar aquilo que que foi apresentado pela psicóloga surda e atuante no atendimento de pessoas com deficiência auditiva, Ana Marques que representou o CRP SP na APAF (Assembleia de Políticas, da Administração e das Finanças do Sistema Conselhos de Psicologia), objetivando construir resolução para o atendimento psicológico às pessoas surdas.
É importante explicar que este foi o meio que encontrei de pontuar algumas das afirmações do texto que eu, como uma psicóloga surda oralizada atuante na psicologia, acredito serem relevantes ao debate apresentado.
Sabendo disso, e se você é uma pessoa surda que precisa de atendimento psicológico online ou não, ou se é um profissional que está inserido nesse meio, fique a vontade, use os comentários que será um prazer levantar pontos importantes para uma discussão que se relaciona a nós.
E não esqueça, se curtir, compartilhe, assim este conteúdo pode chegar às mãos de mais pessoas.
1. O conceito de diversidade
Diversidade está relacionado a diferença existente entre pessoas de uma mesma sociedade.
Diferenças essas que se evidenciam na identidade e característica presente em cada um de nós.
É importante ressaltar que não está apenas restrito a estas significações, mas também com fatores geográficos, demográficos que transparecem nas diferenças culturais, de identidade e experiências vivenciadas.
Diante disso a Universidade de Harvard realizou uma pesquisa sobre diversidade intitulada “The three types of diversity that shape our identities” (Os três tipos de diversidade que moldam nossas identidades em tradução livre) que identificou, por exemplo, que existem três principais: a diversidade demográfica que é a mais conhecida, a diversidade cognitiva e a diversidade experiencial.
A primeira está relacionada à identidade de origem, a segunda relaciona-se à maneira em como cada um lida com problemas e se reflete nas situações e a terceira que se baseia nas experiências que moldam o nosso emocional.
Além disso, não podemos ignorar o fato do Paradoxo da In(ex)clusão que “é esse processo perverso que ocorre na in(ex)clusão, na normalização, que, ao acolher a diferença, também a exclui na mesma norma que a abarca” [9].
Diante disso, vale pensar que…
2. Debate sobre surdez sem a presença da comunidade, uma única pessoa não pode representar a realidade de milhões.
O debate público tem se perpetuado através dos anos como uma forma de possibilitar a participação do coletivo sobre temas importantes e que afetam a convivência em sociedade.
Esse é o caso da surdez um tema que já está em pauta há pelo menos 100 anos com muitos avanços importantes, mas ainda há muito por fazer.
A comunidade surda é composta por indivíduos que utilizam a Língua Brasileira de Sinais e as que fazem uso de tecnologias auditivas como os aparelhos auditivos ou implante coclear.
Esse último grupo tem diferentes graus de surdez, seja ela leve, moderada, severa e profunda.
Surdez que pode ter sido adquirida ou inata, ou seja, que já nasce com o indivíduo.
A oralização depende do tipo de surdez para que aconteça, uma vez que aprendemos pela audição, dessa forma pode-se caracterizar por surdez pré-lingual ou pós-lingual.
A primeira sendo antes do contato com a língua materna e a segunda após.
A pessoa com surdez não nasce “muda” e nem perde a voz quando se descobre com diagnóstico de surdez uma vez que seria preciso que houvesse problemas nas cordas vocais ou mesmo a ausência das mesmas o que não ocorre na maioria dos casos.
A não oralização se dá justamente pela ausência da audição, mas as cordas vocais são saudáveis.
O debate citado logo no início deste artigo e o que ocorreu como representação do CFP – Conselho Federal de Psicologia que enviou uma psicóloga surda oralizada para “falar” por toda a comunidade surda onde a mesma utiliza tecnologias auditivas e realiza atendimentos voltados para pessoas com surdez que dialoga com o pressuposto que a maioria utiliza a Língua de Sinais Brasileira como primeira língua.
Onde a mesma, possuindo especialização em diversidade discorre sobre a surdez considerando que a comunidade surda necessita para sua ampla comunicação e atuação na sociedade da Língua de Sinais Brasileira quando de fato não é bem assim.
3. Colocar a Libras como solução na vida dos surdos.
A Língua de Sinais Brasileira para um determinado grupo dentro da comunidade é importante, uma vez que foram inseridos neste contexto pela família ou se identificam.
Os surdos que utilizam a oralização não necessitam desse recurso, sua primeira língua é a Língua Portuguesa, pois, apesar de estarem com a surdez instalada, ela não atrapalha na comunicação com os outros.
Requerem sim acessibilidade com a introdução de legendas em vídeos aulas relacionado a absorção de conteúdos educativos e de entretenimento, como cinemas, e na internet.
Embora a mesma psicóloga representante se coloque (ou tenha sido colocada) como legítima representante da comunidade e esteja no seu lugar de fala justamente por ter surdez e utilizar tecnologia auditiva, não se pode generalizar.
A mesma se identifica com a Língua de Sinais Brasileira o que é válido e portanto deve ser respeitado. Mas precisamos incluir em seu discurso sobre a diversidade existente dentro da comunidade de surdos, o que não ficou claro no que foi apresentado.
4. A acessibilidade depende da realidade vivida porque nem todo surdo necessita ou deseja usar Libras.
Cada pessoa vivencia e experiencia estar no mundo de diferentes formas e cabe somente a ela responder por qual direção prefere caminhar.
Não dá para padronizar comportamentos e maneiras de estar em sociedade se pautando por uma parcela do grupo ao qual a mesma atua.
Como psicóloga surda oralizada que utiliza tecnologia auditiva e não se identifica com a Língua Brasileira de Sinais ouso dizer que faço parte do outro grupo que atua sobre a sociedade em que está inserido(a) através de outros recursos que não somente a informada pela psicóloga que representou a comunidade pelo Conselho Federal de Psicologia.
Existem 10 milhões de surdos somente no Brasil segundo o último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e nessa contabilização há pessoas com algum grau de surdez e que não se identificam (assim como eu) com a Libras.
E esse número pode ter aumentado com o passar dos anos. Estamos às portas da realização de um novo censo que irá trazer uma nova atualização.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2015, somente no Brasil já alcançamos a taxa de 28 milhões de pessoas com algum grau de surdez, o que representa 14% da população e esse crescimento é relevante considerando a informação do IBGE.
Dentro destes dados informados pelo IBGE há identificação que 97% da população que apresenta surdez não fazem utilização da Língua de Sinais Brasileira.
A pesquisa também avaliou o conhecimento de Libras entre as pessoas de 5 a 40 anos que responderam ter pelo menos alguma dificuldade em ouvir.
Elas totalizaram 1,7 milhão em 2019. Esse recorte se deu em razão de haver pessoas que adquirem a surdez com a idade e continuam a se comunicar na sua língua materna, ou seja, oralmente.
5. Identidade surda tem mais a ver com a forma em que cada um enxerga e interage do que com a sua surdez em relação ao mundo.
Não é algo pronto, é construído e experienciado.
A descoberta da surdez seja ela na infância, na adolescência ou na fase adulta é uma experiência que afeta psicológica e cognitivamente quem nela se encontra.
Sua forma de estar e ser no mundo muda radicalmente em relação a como era antes da surdez se descoberta na fase pós-lingual.
A subjetividade do sujeito se pauta pela sua fala em relação ao que vivencia cotidianamente.
E nessa parte não é possível medir o imensurável, ou seja, a surdez só é vista e sentida por quem se encontra nela, se trata de um evento privado e não público.
Eventos públicos são exatamente aqueles em que estão visíveis e podem ser compreendidos pela maioria já que há padrões similares nos comportamentos apresentados entre o coletivo.
O ser humano é o sujeito biopsicossocial em construção, que muitas vezes em sua jornada se desconstrói de suas convicções e valores para dar lugar a outros.
Uma única pessoa que possui surdez não pode falar por toda comunidade sem que a mesma esteja presente, participando em conjunto dos debates públicos sobre sua condição.
O CFP com base na própria psicologia histórico cultural deve sim chamar todas as vozes para falar, difundir sobre o tema, evidenciando a diversidade, pluralidade, eliminando a estigmatização, o preconceito errôneo e compartilhamento reducionista de que todo(a) surdo(a) depende da Libras para estar em sociedade.
Antes deve-se promover o diálogo saudável entre a comunidade e sociedade e entre os que compõem a comunidade de surdos.
Concluindo…
Dialogar sobre temas que envolvem o coletivo dentro de uma sociedade é importante e necessário, mas alguns cuidados devem ser tomados ao se fazer isso.
Buscar informações e atualizações sobre os processos vivenciados pelo grupo ao qual se deseja falar. Conversar com diferentes vozes dentro da comunidade que abarque a pluralidade existente.
Pesquisar referências importantes que respaldam o que será discutido e compartilhado afinal a sociedade terá acesso a estas informações e debates e é vital estar fundamentado pelas falas de quem vivencia a surdez no dia a dia, seja ela pela Língua de Sinais ou pelos surdos oralizados que utilizam tecnologias auditivas, além é claro de estudos já realizados com cada grupo.
Material para acessar não falta ao longo de quase 100 anos de luta pela comunidade surda e agora acrescido de informações tanto dos órgãos responsáveis por coletar dados sobre a população, mas agora trazendo visibilidade a outra parte dessa comunidade que são conhecidos como surdos oralizados.
Percebe-se com isso a importância de cada vez mais difundir informações completas para acesso a todos e como bem diz a Organização Mundial da Saúde:
“A falta de informações precisas e atitudes estigmatizantes às doenças auditivas e à perda auditiva muitas vezes limitam as pessoas a acessar o cuidado para essas condições. Mesmo entre os prestadores de cuidados de saúde, muitas vezes há escassez de conhecimento sobre prevenção, identificação precoce e gerenciamento de perda auditiva e doenças auditivas, dificultando sua capacidade de prestar os cuidados necessários.
Na maioria dos países, o atendimento ao ouvido e auditivo ainda não está integrado aos sistemas nacionais de saúde e o acesso aos serviços de atenção é um desafio para aqueles com doenças auditivas e perda auditiva.
Além disso, o acesso ao ouvido e ao atendimento auditivo é pouco medido e documentado, e faltam indicadores relevantes no sistema de informação em saúde.Mas a lacuna mais gritante na capacidade do sistema de saúde está nos recursos humanos.
Entre os países de baixa renda, cerca de 78% têm menos de um especialista em ouvido, nariz e garganta (ENT) por milhão de população; 93% têm menos de um audiólogo por milhão; apenas 17% têm um ou mais fonoaudiólogo por milhão; e 50% têm um ou mais professores para surdos por milhão.
Essa lacuna pode ser fechada por meio da integração do ouvido e da atenção auditiva à atenção primária à saúde por meio de estratégias como compartilhamento de tarefas e treinamento, delineados no relatório.
Mesmo em países com proporções relativamente elevadas de profissionais de ouvido e de audição, há distribuição desigual de especialistas. Isso não só coloca desafios para as pessoas que precisam de cuidados, mas também coloca demandas irracionais nos quadros que prestam esses serviços.”
Referências utilizadas sobre diversidade dentro da surdez
[1] Jornal Psi, Ed. 198, CRP-SP. Disponível em: https://www.crpsp.org/uploads/impresso/181121/9F4XF7d7faiWHV1ocgTo9dGC9rtae7OT.pdf
[2} Quase 30 milhões de brasileiros sofrem de surdez – Jornal da USP
[3} https://www.who.int/publications/i/item/world-repor
[4} 7 Coisas Que Você Não Sabe Sobre A LIBRAS (língua Brasileira De Sinais) (cronicasdasurdez.com)
[5] Em direção ao respeito à diversidade na surdez – Desculpe, Não Ouvi! (desculpenaoouvi.com.br)
[7] Censo Demográfico de 2020 e o mapeamento das pessoas com deficiência no Brasil
[8] The 3 Types of Diversity That Shape Our Identities (hbr.org)
[9] MARTINS, Vanessa Regina de Oliveira. Educação de surdos no paradoxo da inclusão com intérprete de língua de sinais: relações de poder e (re)criação do sujeito. 2008. 117 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/190439>. Acesso em: 11 ago. 2018.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS).World Report on hearing. Genebra, Mar. 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/world-report-on-hearing. Acesso em: 25 fev. 2022.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS).Who: 1 in 4 people projected to have hearing problems by 2050. Genebra, Mar. 2021. Disponível em:OMS: 1 em cada 4 pessoas projetadas para ter problemas auditivos até 2050 (who.int)
Bibliografia recomendada sobre Surdez
Vendo vozes : uma viagem ao mundo dos surdos / Oliver Sacks ; tradução Laura Teixeira Motta. — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.
Crônicas da Surdez / Paula Pfeifer. – São Paulo: Plexus Editora, 2013.
Novas Crônicas da Surdez: epifanias do implante coclear / Paula Pfeifer. – São Paulo: Plexus, 2015.
Surdez: silêncio em voo de borboleta / Patricia Rodrigues Witt. – 2. ed..,rev., atual. ampl. – Porto Alegre: Evangraf, 2017.
Desculpe, não ouvi! / Lakshmi Eliane Lobato Austregesilo. São Paulo, SP: Sobretom Comunicação, 2019.
Escute como um surdo / Lakshmi Eliane Lobato Austregesilo. São Paulo, SP: Sobretom Comunicação, 2020.
Pérolas da Minha Surdez/ Nuccia de Cicco – Belford Roxo: Bindi, 2020.